Ela caminhou 900 km ao longo de 35 dias. Passou por momentos marcantes e outros de muito esforço. Seguiu sozinha durante a maior parte do tempo; nĂŁo por que nĂŁo fez amigos â pelo contrĂĄrio â mas porque estava em busca de respostas para perguntas que ainda nem imagina existir. Assim como a entrevista com o Elon, que foi a pĂ© Ă BasĂlica de Aparecida, no interior de SĂŁo Paulo, este Ă© mais um texto que mostra a força de vontade para vencer limites e alcançar desafios pessoais que transcendem a barreira da religiĂŁo.
A espanhola Miriam fez O Caminho de Santiago de Compostela em maio deste ano e deu uma entrevista pra gente contando sobre essa experiĂȘncia incrĂvel e o quanto ela aprendeu sobre si mesma. Ela tambĂ©m falou sobre a rotina de caminhadas, as dificuldades, os momentos bons, os amigos que foi encontrando pelo caminho e deu vĂĄrias dicas pra quem tem vontade de fazer a peregrinação. Olha sĂł:
Como surgiu a ideia de fazer o Caminho de Santiago de Compostela? Vc sempre teve essa vontade?
Embora eu jĂĄ tivesse ouvido falar sobre o caminho de Santiago hĂĄ muitos anos, eu nunca tinha pensado em fazĂȘ-lo. AtĂ© que um dia, em fevereiro, meu irmĂŁo e eu assistimos ao filme âO Caminhoâ (veja o trailer aqui) e a ideia se transformou em um plano mais real. Quando terminei minha faculdade, estava com o melhor estado de espĂrito para fazer o Caminho, jĂĄ que sentia uma necessidade de ficar sozinha e me desconectar de tudo. Eu queria viver uma aventura. EntĂŁo, eu coloquei uma data para meu plano: 16 de maio de 2015.
VocĂȘ Ă© religiosa?
Mesmo que o cristianismo tenha feito parte da minha educação, eu me considero crente, mas não religiosa. E essa crença foi se intensificando durante o caminho.
Lå, eu me guiei totalmente pela intuição, não levei nem mapa, nem guia, nem GPS. Minha intuição sempre me levou pelo caminho certo.
Talvez eu nem sempre estivesse no caminho oficial, o correto, mas cada desvio me apontava uma experiĂȘncia que teria de viver. Foi assim que um dia conheci e fiz amizade com uma peregrina, mas nos despedimos pensando que cada uma seguiria seu rumo. PorĂ©m, sempre voltamos a nos encontrar nos lugares que menos imaginĂĄvamos. DeverĂamos estar juntas, talvez. :-)
VocĂȘ fez algum tipo de preparação antes?
Durante as quatro semanas anteriores, me informei pela internet sobre as possibilidades de rotas, suas vantagens e desvantagens. TambĂ©m busquei informaçÔes sobre o equipamento recomendado. Algumas coisas eu tive que comprar, jĂĄ que nunca havia feito trilhas nem viajado sozinha com uma mochila, outras eu pedi emprestado. Comecei a caminhar todos os dias com as botas de trekking para adaptar aos meus pĂ©s. Â
Qual foi sua rota?
AtĂ© o final eu ainda nĂŁo tinha uma rota clara, mas escolhi o caminho da costa, começando em IrĂșn (norte da Espanha). Imaginei que ia gostar muito das paisagens que combinavam mar e montanha e que este caminho seria mais tranquilo, jĂĄ que nĂŁo Ă© o mais popular. Pensei que assim poderia ter mais tempo para refletir e, ao mesmo tempo, conhecer melhor as pessoas pelo caminho.
Cada vez que conversava sobre isso com os hospedeiros e peregrinos, todos me aconselhavam fazer um dia o caminho medieval, o mais antigo e difĂcil de todas as rotas. HĂĄ peregrinos que jĂĄ fizeram os caminhos mais de uma vez (um, inclusive, o fez 25 vezes!) e tĂȘm muitas experiĂȘncias. Em um ponto da minha rota era possĂvel abandonar o caminho da costa e seguir pelo primitivo. Fiquei curiosa, por isso, depois de duas semanas caminhando pela costa, decidi mudar a rota e fazer o caminho medieval.
Quantos km caminhou e quanto tempo levou no total?
No total, caminhei uns 900 Km em 35 dias. Por dia, andava de 27 a 33 km, dependendo das condiçÔes da estrada e dos meus pĂ©s. :-) Contando com as perdas, desvios e buscas por albergues, acredito que tenha sido atĂ© mais⊠Um dia eu fiz 48 km, por que desviei da rota recomendada â Ă s vezes os sinais (setas amarelas e desenhos nĂŁo sĂŁo tĂŁo Ăłbvios).
Como e onde vocĂȘ dormia e comia?
Dormia em albergues para peregrinos. Havia albergues municipais e privados, alĂ©m de monastĂ©rios. As condiçÔes eram boas. Ăs vezes, os quartos eram grandes e tinham beliches para 30 pessoas ou mais (nos municipais), jĂĄ nos privados os quartos acomodavam atĂ© 6 pessoas.
Alguns albergues ofereciam cafĂ© da manhĂŁ e jantar, mas na maioria das vezes eu preparava um sanduĂche para o almoço, tomava cafĂ© em uma cafeteria ou bar antes de sair do povoado ou na estrada e jantava em um restaurante. Pelo caminho existem muitos bares e restaurantes que oferecem menus Ăłtimos para peregrinos, com bebida e trĂȘs pratos por 10 euros.
Alguns albergues tambĂ©m tĂȘm cozinha e nĂłs costumĂĄvamos nos juntar com outros peregrinos, comprĂĄvamos os ingredientes no supermercado e fazĂamos um jantar para todos. Assim, dava para conhecer mais pessoas e passar momentos muito agradĂĄveis.
Quais foram os momentos mais difĂceis?
NĂŁo eram muitos. Caminhar com chuva na montanha a 400 metros ou mais de altura, com subidas Ăngremes e as botas afundando na lama requeria um grande esforço â mas eu aproveitava o momento e comemorava por chegar ao topo -, ou quando tinha bolhas que nĂŁo me deixavam, por mais esforço que eu fizesse. :-)
Medo eu sentia de alguns cachorros presos nas casas por onde eu passava, pois eu estava sozinha e eles latiam de uma forma muito agressiva. Me assustavam quando estava mais mergulhada em meus pensamentos.
Acho que o contato com algumas pessoas pode ser um pouco difĂcil. Por isso Ă© importante afastar-se das energias negativas e nĂŁo deixar que elas influenciem no rumo que toma seu caminho.
E os melhores?
Foram muitĂssimos!
O melhor momento Ă© subir uma montanha muito alta rodeada de um bosque verde, sem saber o que hĂĄ atrĂĄs dela. Chegar no topo, ver o mar azul ao fundo e a cidade em que vai terminar sua etapa do dia. Ă impressionante!
Os melhores momentos tambĂ©m sĂŁo os que vocĂȘ estĂĄ com os companheiros e amigos que conhece em tĂŁo poucas horas pelo caminho, nos albergues, e que acabam se tornando sua famĂlia. Saber que caminha longos perĂodos sozinha, mas que tem gente atrĂĄs e Ă sua frente e que os encontrarĂĄ nos pontos de descanso ou ao final do dia, tranquiliza e motiva muito. Â
Levantar todos os dias sem saber com quem vai encontrar, que paisagens vai ver, onde vai terminar o dia, em que cama vai dormir, o que vai comerâŠ. Ă© uma aventura e surpresa diĂĄria. Lembro de um dia que estava caminhando sozinha e, mesmo que nĂŁo costumasse entrar nas igrejas, neste dia eu resolvi entrar e encontrei no livro de visitantes uma poesia escrita alguns dias antes pela minha amiga e dedicada a mim. Que surpresa!
A chegada a Santiago de Compostela, a meta, tambĂ©m Ă© muito emocionante. NĂŁo sĂł por ter atingido o objetivo e cumprido um desafio, mas tambĂ©m pela felicidade de encontrar outras pessoas que havia conhecido e tinha âperdidoâ ao longo do caminho. Ver como os peregrinos se abraçam, choram e riem Ă© lindo!
Pessoas que fazem peregrinaçÔes ou trilhas para lugares religiosos ou histĂłricos dizem que a principal lição Ă© o autoconhecimento. VocĂȘ concorda?
Totalmente. VocĂȘ aprende muito sobre si mesmo, sua força de vontade, sua personalidade, sua vida, os limites do seu corpo⊠AlĂ©m disso aprende o que Ă© a essĂȘncia da vida. Aprende a se afastar do consumismo, vivendo apenas com uma mochila que leva tudo que precisa para sobreviver e desejando chegar ao albergue pra descansar, sem se preocupar se vai ter WiFi, banheiro privado ou se a cama tem o melhor colchĂŁo. Os luxos nĂŁo te importam.
VocĂȘ conhece muitas pessoas de nacionalidades, classes sociais e profissĂ”es diferentes e todos se vestem iguais e estĂŁo sob as mesmas condiçÔes. Assim, todo mundo se mostra exatamente como Ă©, todos se apoiam e se entendem, mesmo sem falar o mesmo idioma.
Quais sĂŁo suas dicas pra quem pretende fazer o caminho pela primeira vez?
O importante Ă© que a vontade de fazer o caminho nasça de vocĂȘ. VocĂȘ tem que se sentir preparado psicologicamente e estar disposto a todos os imprevistos, sem medo. Aconselho nĂŁo planejar todas as etapas, mas escutar o que seu corpo pede para aproveitar o percurso. Simplesmente levar anotado todos os albergues e pensar, na noite anterior, quantos quilĂŽmetros quer andar no dia seguinte jĂĄ Ă© o suficiente.
Os guias causaram desùnimo em alguns peregrinos que encontrei pelo caminho, jå que eles não conseguiram fazer os 30 km recomendados em seus primeiros dias (normal! Leva tempo para se acostumar com a nova situação). Eu dispensei meu guia no segundo dia e não me arrependo. A maior parte da estrada é muito bem sinalizada e as pessoas são muito gentis e te indicam o caminho.
Outra dica Ă© levar em conta o peso da mochila: quanto mais leve, melhor. VocĂȘ tem que pensar que o caminho passa por cidades e povoados que tĂȘm lojas e supermercados; se faltar algo, sempre dĂĄ pra comprar pelo caminho.
Penso que o esforço do peregrino para alcançar sua meta vale muito Ă pena. Esta experiĂȘncia Ă© muito vĂĄlida para se conhecer melhor e lembrar de seus valores e princĂpios. Levar uma mochila â literalmente um fardo â durante muitos quilĂŽmetros atĂ© alcançar uma meta corresponde Ă nossa vida. O importante Ă© que depois do caminho aprendemos a levar menos peso. No final, o caminho reflete nossa vida e nossa vida se vĂȘ refletida no caminho.
VocĂȘ sabia?
Conforme dizem as lendas, o apĂłstolo Tiago Maior (que depois foi nomeado Santiago) teria sido enterrado nos arredores de um local que ficou conhecido como âCampo de Estrelaâ, onde mais tarde foi construĂda uma igreja em sua homenagem: a Catedral de Santiago de Compostela. Movidos pela fĂ©, em meados do sĂ©culo IX, milhares de fiĂ©is de Santiago passaram a fazer peregrinaçÔes a partir de vĂĄrios paĂses da Europa para visitar seu tĂșmulo.
Apesar de ter ficado esquecido por muitos anos, desde 1980, O Caminho voltou a receber milhares de peregrinos por ano que, movidos nĂŁo apenas pela religiĂŁo, agora buscam desafios, autoconhecimento, equilĂbrio interior e fĂ© (seja ela qual for). O trajeto foi declarado PatrimĂŽnio da Humanidade (na Espanha em 1993 e na França em 1998) e o Primeiro ItinerĂĄrio Cultural Europeu em 1987.
4 comments
Para uma caminhada de 11 dias. Onde recomenda começar? Sozinha.
O ponto de partida depende sempre do tempo que a pessoa dispĂ”e, eu estou a planear o meu para 5/6 dias sendo que tenho um dia extra para alguns atrasos. đ
sempre admirei os peregrinos no caminho de Santiago de campostela. e gostaria de saber quem esta no Brasil qual seria a melhor localização para começar esta caminhada..Parabéns a todos que ja fizeram esta caminhada.
O ponto de partida depende sempre do tempo que a pessoa dispÔe, eu estou a planear o meu para 5/6 dias sendo que tenho um dia extra para alguns atrasos. ;)